terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Fazendo da tua vida o que teu coração te dá*

por Memorable Quotes

Vamos convencionar aqui que o amor é mais fraternal e que a paixão é aquela coisa que dá tesão. Agora pense você em algo que te dá tesão. Sim, se o caso for sexual, pode ser o sexo. Mas se você é músico, pense na música e nas pessoas cantando suas letras bem alto. Então, quem matou o seu tesão?

“Só acredito no semáforo,
Só acredito no avião.
Eu acredito no relógio, 
Acredito no coração”

Quando decidi que queria tocar ganhei um violão. Era do mais barato, daqueles que você compra em supermercados. Na época entendi que meus pais achavam que era uma coisa passageira.  Sabiam de nada. Um ano depois ganhei o violão que eu escolhi. Depois vieram duas guitarras e uns pedais, que eu mesmo comprei, três ou quatro bandas e tô indo pro segundo disco solo. E quem diria que aquelas revistas cifradas e aquele dedilhado informe de Preta Pretinha iriam me levar a tantas cidades e a conhecer tanta gente bonita e louca?

“Eu sou um pássaro
Que vivo avoando
Vivo avoando
Sem nunca mais parar
Ai Ai! Ai Ai! Saudade
Não venha me matar”

Nunca fiz um estridente sucesso, porque sempre me liguei mais no mundo material e reprimi esse amor. Mas vez ou outra uma pessoa ou outra (entre amigos e desconhecidos) me perguntam sobre as músicas novas. Se eles soubessem como isso me deixa feliz...e o quanto já me salvou.

“Cruzei o país a caminhar
Desenhei nas ruas um amor,
Que já não sei se é real, ou se não existe. 
E se eu sou triste, a causa e você “

Eu tenho lido um tanto sobre Indústria Cultural e tenho percebido que nós, artistas, estamos cada vez mais indústria e menos cultural. Cada vez menos show e mais business. Claro que cada cabeça é mundo com seu próprio jeito de ver o verde. Miro-me no exemplo de Roberto Bolaños. Ele era o Chaves e o Chapolim, dois heróis da infância latino americana, ou apenas o empresário que passou a perna nos amigos? Acho que todo artista deve lembrar que a arte é maior do que ele e que ela move uma série de coisas no mundo, das quais a gente mesmo se aproveita pra compor.

"Vou viver o que o tempo quiser comigo
Vou cantar enquanto tiver amigos, ela vem
Pra ser muito mais que o amor, pra ser mais”

Quantas pessoas do público (como se diz na indústria do entretenimento) já viveram histórias que de tanta força e lirismo metamorfosearam-se em letras de canções? Isso é o mundo ajudando o artista.  Mas como o artista devolve isso pro mundo? No caso da música, naquela linda relação que normalmente arrepia e faz um ogro se emocionar. E música foi feita pela situação, universal, que aconteceu com outra pessoa... “mas, noooossa, como parece que isso foi escrito pra mim!” É essa relação que torna o artista o Harry Potter sem varinhas. Por isso os festivais são como uma Hogwarts (ou a Terra do Nunca).

Give me love
Give me love
Give me peace on earth
Give me light
Give me life
Keep me free from burden
Give me hope
Help me cope, with this heavy load
Trying to, touch and reach you with
heart and soul

Nesse sentido eu constato outra coisa: se as gravações das bandas são sempre superiores aos shows, o que leva você a um festival? Pra mim, quando não estou tocando, amigos, cerveja gelada, e aquela coisa meio clerical de cantar canções que fazem sentido na sua vida, ali, no instante em que elas são executadas, por quem as compôs. É o que Walter Benjamin chamava de Aura da Obra de Arte. A experiência. 

“o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica
da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático,
e sua significação vai muito além da esfera da arte.”
 (BENJAMIN, Walter)

Como eu sempre fui tímido, tocar violão pra mim era poder falar pro mundo e, confesso, pra chamar a atenção das gurias. Logo eu passei a compor porque as gurias que eu conhecia pediam músicas de artistas que eu não gostava muito (malz aê Jota Quest). Passar a compor não foi fácil, extremamente fácil, mas foi paixão. E foi um amor tão louco que logo me deu vontade de tocar por aí e acabou toquei em muitos lugares pequenos, pra pouca gente e em lugares superlotados. Umas vezes fui bem pago, tanto quando recebi cachê a vista ou a prazo ou até mesmo quando nada recebi, do prometido ou não. 

“Estive em igrejas e estive nos bares
Sempre a procurar
Estive nas lojas de departamentos
Estive nas ondas, estive nas serras.”

Tocar pra mim é como, imagino que deve ser, rezar uma missa. Todos ali ouvindo minha palavra (da salvação) e alguns ainda repetindo de olhos fechados. Isso me arrepia. Não quero perder essa sensação nunca. É a sensação que me faz crer que eu pertenço a este mundo. Acho que deve ser parecido com o que Harry sente quando encontra seus amigos na escola de Hogwarts, ou quando Neo chega à Matrix.

“Esperei o amor vir quebrar as janelas, 
Pra eu, sair daqui.”

De certa forma eu nunca me iludi com a ideia de vender milhões de cópias. Nunca tive aquela ilusão norte-americana de ser o próximo milionário da música. Essa coisa que o capitalismo prega de que todos possuem as mesmas chances, nunca me enganou. Essa coisa do Capital que faz o anonimato subir à cabeça, onde toda banda que já teve música na novela ou clipe na MTV chega. Uns chamam isso de desanimo, eu chamo de trabalhar com a realidade. Porque na real, devem existir poucas pessoas mais animadas do que eu, pra tocar. 

“I said I know it's only rock 'n roll but I like it
I said I know it's only rock'n roll but I like it, like it, yes, I do
Oh, well, I like it, I like it, I like it”

Um intervalo na leitura pra lembrar que, nas poucas aulas de violão que eu pude fazer, o professor sempre insistia em apresentar músicas do Zeca Baleiro:

Você só pensa em grana
Meu amor!
Você só quer saber
Quanto custou a minha roupa
Custou a minha roupa...

Quando eu nasci
Um anjo só baixou
Falou que eu seria
Um executivo
E desde então eu vivo
Com meu banjo
Executando os rocks
Do meu livro
Pisando em falso
Com meus panos quentes
Enquanto você rir
No seu conforto
Enquanto você
Me fala entre dentes
Poeta bom, meu bem!
Poeta morto!...

Espero, que como Hogwarts, sempre haja um trem mágico que me leve até um festival. Porque o mundo material é uma coisa de trouxa mesmo. Eu respeito a posição de outros artistas, mas eu não me envergonho de trabalhar em outras áreas para pagar as minhas contas e fazer da música algo tranquilo. Nada parar o Rock. Me reservo o direito de deletar uns mp3 de artistas que me decepcionaram com suas posições profissionais, mas jamais vou deixar de me arrepiar com música. Jamais deletarei o Belle And Sebastian que me fez ter vontade de tocar violão:

“It's safer not to look around
I can't hide my feelings from you now
There's too much love to go around these days”


*O texto de hoje eu dedico aos loucos que fizeram o Festival Suíça Bahiana 2014. Gente que trabalha de graça pra fazer de uma cidade comum um brinco de ouro perdido no meio de cimento e asfalto. Porque só gente louca seria sã o suficiente pra fazer isso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário