Ausência. s. f.
Estado ou circunstância de não estar presente; Tempo que dura a ausência. Tempo necessário para reorganizar. Reorganizar as ideias, os espaços, o corpo, a mente. No período em que me mantive afastada daqui, encontrei justamente toda a atmosfera essencial para essa reorganização. Mas enfim, cá estou eu, de volta com milhões de ideias prontas para serem postas em prática.
E para (re)começar em grande estilo, nada melhor que esse texto super delicado da Milly Lacombe, jornalista, que mantêm uma coluna na revista TPM
Deliciem-se:
Como fazemos todos os dias, acordamos e não saímos da cama.
Você pede beijos, chamego, dengo, mimos e, em seguida, as cachorras. Eu
me levanto e abro a porta para elas entrarem. Elas pulam na cama
manifestando a alegria de quem se amava demais, mas foi convocado para
ir à guerra em outro país, sobreviveu e, depois de anos, volta para casa
e reencontra o velho amor.
Vão direto para você, e, por compaixão, vêm a mim na sequência. Finalmente, depois desse espetáculo de extrema felicidade canina, as duas deitam. Uma colada a sua cabeça, outra a seus pés – e eu entendo ambas. Assim ficamos por vários minutos até que alguém – sempre você – finalmente decide que é hora de começar o dia.
Você vai para o banho e eu pergunto baixinho se vai lavar a cabeça, torcendo sempre para a resposta ser “sim”, o que acrescenta pelo menos uns 20 minutos ao evento – tempo em que posso permanecer esparramada na cama com as cachorras.
Você finalmente volta e, se me vê na cama, deita um pouco mais. Eu fecho os olhos e tento relaxar, mas os próximos movimentos da casa já estão em minha cabeça, e é preciso estar alerta e concentrada para não errar.
Levanto-me e, enquanto você se troca, corto o mamão, ponho a mesa, faço o café e esquento o pão. Calculo para que tudo esteja pronto no mesmo instante em que você termina de secar seus longos e brilhantes cabelos e diz: “Estou atrasada”.
Por isso eu corro demais
Embora você não tenha hora para chegar ao trabalho, você sempre se considera atrasada, seja às sete, oito ou dez da manhã.
Eu sei, porque conheço seus hábitos há cinco anos, que você está apenas aparentemente pronta. Está vestida, mas faltam todos os acessórios: brincos, anéis, colares, a bolsa correta para aquela roupa, sem falar no gloss. É estranho pensar que você, que se conhece há 33 anos, não saiba disso. Por farra, pergunto se você está pronta, e você, séria, diz que está pronta.
Você senta para comer.
E então, depois de comer e folhear o jornal, chegamos à hora derradeira: você se prepara para sair de casa.
Cinco anos acordando ao seu lado me fizeram entender que estamos diante de um acontecimento que, embora cotidiano, não tem nada de banal.
É preciso que todas as atenções estejam voltadas para esse momento mais ou menos como a sala de controles da Nasa se prepara para o lançamento de um foguete – não há espaço para desatenção.
Como você julgava estar pronta, é sempre uma enorme surpresa quando você mesma descobre que está sem brincos. “Você viu meu brinco? Só acho um.” E eu saio à procura do outro.
Você passa gloss enquanto decide que bolsa usar, e inevitavelmente vai trocando as coisas de uma bolsa para a outra ao mesmo tempo em que diz: “Eu queria usar aquele colar que minha mãe me deu, mas não sei onde está”. Nessa hora, se for um bom dia, eu já terei achado o brinco e me entrego à busca do colar.
Mais uma vez, você declara estar pronta. Coloca a bolsa no ombro – ou na divisão entre braço e antebraço, dependendo do modelo –, pega a mochila do computador e mais uma ou duas
sacolinhas que você carrega diariamente com coisas tão variadas quanto papéis soltos, isqueiros e lanchinhos, e vem me dar um beijo enquanto veste o colar que eu acabei de encontrar.
Você realmente acredita que está de saída e por isso coloca um pé para fora do apartamento. Eu espero.
“Será que vou sentir frio?” – diz você voltando para pegar um casaco.
O que eu acho a respeito do clima e de sua relação com ele naquele dia de fato pouco importa porque você já sabe o que quer. Entra sem se desfazer da bolsa, da mochila do computador ou das sacolinhas e vai pegar um casaco no armário.
Na saída, se coloca diante do espelho e, com uma das mãos, levanta o casaco à frente do peito a fim de ver se combina.
Para fazer isso foi preciso deixar uma das sacolinhas no chão. E nessa hora eu fico feliz por estar tão atenta. Você me dá mais um beijo e eu entrego a sacolinha que você ia esquecendo de levar. Você agradece e sai da casa dizendo tchau para as cachorras. Eu respondo. Ouço o barulho do seu salto sempre muito alto contra o piso frio da escada: você desceu.
Você de fato acredita que está de saída. Eu apenas espero.
Você grita lá debaixo: “Não acho meu cartão de crédito. Vê se deixei aí na mesa”. Não está na mesa, nunca está. Está num bolinho de papéis e extratos e canhotos que você abandona todas as noites no banheiro ou na estante de livros do quarto.
Eu finalmente encontro e jogo pela janela da sala. Você agradece, agora já sem muito dengo porque julga estar mais atrasada do que nunca e está convencida de que o dia já conspira contra você, acreditando piamente que aquela é uma manhã diferente das outras.
O eterno retorno
Você tira a Vespa da garagem coberta, coloca algumas coisas dentro do assento, outras no bagageiro e outras ainda a seu pé. A Vespa é pequena para comportar suas cotidianidades, e todos os dias isso parece surpreender você.
Vejo você pela janela. Está vestindo o capacete que eu dei e balançando a cabeça negativamente, inconformada com o tamanho do veículo.
Você sobe na Vespa e realmente acredita que está de saída. E então você acelera a Vespa e, antes de chegar à rua, freia.
“Não acho meu celular”, você grita apalpando os bolsos. E eu grito que vou procurar, mas não me mexo. O celular está com você, e em alguns segundos será encontrado. “Não precisa, está aqui”, você diz. Você abre novamente o portão que já havia fechado automaticamente.
Você agora de fato saiu. E eu espero.
Em 20 minutos, um pouco mais, um pouco menos, você me mandará uma mensagem de texto com três palavras: eu te amo.
E eu, sentada à mesa com uma xícara de café e com o jornal que não havia conseguido ler, ainda me recuperando da energia gasta para colocar você para fora de casa, penso que não vejo a hora de ver você outra vez.
Vão direto para você, e, por compaixão, vêm a mim na sequência. Finalmente, depois desse espetáculo de extrema felicidade canina, as duas deitam. Uma colada a sua cabeça, outra a seus pés – e eu entendo ambas. Assim ficamos por vários minutos até que alguém – sempre você – finalmente decide que é hora de começar o dia.
Você vai para o banho e eu pergunto baixinho se vai lavar a cabeça, torcendo sempre para a resposta ser “sim”, o que acrescenta pelo menos uns 20 minutos ao evento – tempo em que posso permanecer esparramada na cama com as cachorras.
Você finalmente volta e, se me vê na cama, deita um pouco mais. Eu fecho os olhos e tento relaxar, mas os próximos movimentos da casa já estão em minha cabeça, e é preciso estar alerta e concentrada para não errar.
Levanto-me e, enquanto você se troca, corto o mamão, ponho a mesa, faço o café e esquento o pão. Calculo para que tudo esteja pronto no mesmo instante em que você termina de secar seus longos e brilhantes cabelos e diz: “Estou atrasada”.
Por isso eu corro demais
Embora você não tenha hora para chegar ao trabalho, você sempre se considera atrasada, seja às sete, oito ou dez da manhã.
Eu sei, porque conheço seus hábitos há cinco anos, que você está apenas aparentemente pronta. Está vestida, mas faltam todos os acessórios: brincos, anéis, colares, a bolsa correta para aquela roupa, sem falar no gloss. É estranho pensar que você, que se conhece há 33 anos, não saiba disso. Por farra, pergunto se você está pronta, e você, séria, diz que está pronta.
Você senta para comer.
E então, depois de comer e folhear o jornal, chegamos à hora derradeira: você se prepara para sair de casa.
Cinco anos acordando ao seu lado me fizeram entender que estamos diante de um acontecimento que, embora cotidiano, não tem nada de banal.
É preciso que todas as atenções estejam voltadas para esse momento mais ou menos como a sala de controles da Nasa se prepara para o lançamento de um foguete – não há espaço para desatenção.
Como você julgava estar pronta, é sempre uma enorme surpresa quando você mesma descobre que está sem brincos. “Você viu meu brinco? Só acho um.” E eu saio à procura do outro.
Você passa gloss enquanto decide que bolsa usar, e inevitavelmente vai trocando as coisas de uma bolsa para a outra ao mesmo tempo em que diz: “Eu queria usar aquele colar que minha mãe me deu, mas não sei onde está”. Nessa hora, se for um bom dia, eu já terei achado o brinco e me entrego à busca do colar.
Mais uma vez, você declara estar pronta. Coloca a bolsa no ombro – ou na divisão entre braço e antebraço, dependendo do modelo –, pega a mochila do computador e mais uma ou duas
sacolinhas que você carrega diariamente com coisas tão variadas quanto papéis soltos, isqueiros e lanchinhos, e vem me dar um beijo enquanto veste o colar que eu acabei de encontrar.
Você realmente acredita que está de saída e por isso coloca um pé para fora do apartamento. Eu espero.
“Será que vou sentir frio?” – diz você voltando para pegar um casaco.
O que eu acho a respeito do clima e de sua relação com ele naquele dia de fato pouco importa porque você já sabe o que quer. Entra sem se desfazer da bolsa, da mochila do computador ou das sacolinhas e vai pegar um casaco no armário.
Na saída, se coloca diante do espelho e, com uma das mãos, levanta o casaco à frente do peito a fim de ver se combina.
Para fazer isso foi preciso deixar uma das sacolinhas no chão. E nessa hora eu fico feliz por estar tão atenta. Você me dá mais um beijo e eu entrego a sacolinha que você ia esquecendo de levar. Você agradece e sai da casa dizendo tchau para as cachorras. Eu respondo. Ouço o barulho do seu salto sempre muito alto contra o piso frio da escada: você desceu.
Você de fato acredita que está de saída. Eu apenas espero.
Você grita lá debaixo: “Não acho meu cartão de crédito. Vê se deixei aí na mesa”. Não está na mesa, nunca está. Está num bolinho de papéis e extratos e canhotos que você abandona todas as noites no banheiro ou na estante de livros do quarto.
Eu finalmente encontro e jogo pela janela da sala. Você agradece, agora já sem muito dengo porque julga estar mais atrasada do que nunca e está convencida de que o dia já conspira contra você, acreditando piamente que aquela é uma manhã diferente das outras.
O eterno retorno
Você tira a Vespa da garagem coberta, coloca algumas coisas dentro do assento, outras no bagageiro e outras ainda a seu pé. A Vespa é pequena para comportar suas cotidianidades, e todos os dias isso parece surpreender você.
Vejo você pela janela. Está vestindo o capacete que eu dei e balançando a cabeça negativamente, inconformada com o tamanho do veículo.
Você sobe na Vespa e realmente acredita que está de saída. E então você acelera a Vespa e, antes de chegar à rua, freia.
“Não acho meu celular”, você grita apalpando os bolsos. E eu grito que vou procurar, mas não me mexo. O celular está com você, e em alguns segundos será encontrado. “Não precisa, está aqui”, você diz. Você abre novamente o portão que já havia fechado automaticamente.
Você agora de fato saiu. E eu espero.
Em 20 minutos, um pouco mais, um pouco menos, você me mandará uma mensagem de texto com três palavras: eu te amo.
E eu, sentada à mesa com uma xícara de café e com o jornal que não havia conseguido ler, ainda me recuperando da energia gasta para colocar você para fora de casa, penso que não vejo a hora de ver você outra vez.
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